
Renato Caporali *
Paulo Volker **
A reflexão aqui apresentada enquadra-se no amplo esforço de entendimento dos problemas gerenciais dos projetos de desenvolvimento. Neste tipo de projeto, geralmente se propõe fazer incidir uma “ação transformadora” sobre ambientes social, econômico ou institucional. Modificar a realidade é sempre o objetivo geral. Para tanto, com (a) uma lucidez adequada ao seu objeto, (b) assentado sobre alguma forma de racionalidade técnico-científica, (c) estrutura-se um conjunto de ações de várias ordens, para (d) produzir interações dinâmicas junto aos atores envolvidos, (e) mobilizando recursos diversos, (f) durante um tempo determinado. O gerenciamento adequado de cada um desses aspectos (a ...f), supõe a lógica, deve garantir o objetivo visado.
O objetivo deste artigo é sugerir que, se é certo que a qualidade técnica destes projetos (b...f) estará sempre dependente da qualidade teórica (a), esta nem sempre é condição necessária e suficiente para dar conta dos problemas que enfrentam. De forma recorrente, podem ser problemas relativos ao tempo (f) aqueles que podem determinar o grau de eficácia transformadora dos projetos. Ademais, queremos sugerir que este tipo de preocupação parece distante das reflexões que as abordagens teóricas de projetos tendem a sustentar. Correta a afirmação, restaria uma incontornável pergunta a ser respondida: haveria conceitos que permitiriam então melhor visualizar e manobrar, de um ponto de vista gerencial, as variáveis relativas ao tempo e à temporalidade do projeto?
Os apontamentos sugeridos neste artigo introduzem uma linha de pesquisa e reflexão que, nesse momento, não pode ter pretensão de haver atingido rigor mais apurado. Em se tratando de problemas do tempo, seria mesmo esse rigor possível? Ou tratar-se-ia mais e tão somente de ter uma compreensão genérica da problemática? Na revisão bibliográfica que fizemos em busca de referências anteriores na exploração do tema, observamos que as reflexões relativas ao tempo ou o tratam como uma “variável espúria” (Kerlinger, 1981 e Richardson, 1985) ou “moderadora” (Baron e Kenny, 1986), mas não como fator determinante do resultado de um projeto. Os projetos de uma forma geral parecem continuar tratando o tempo de uma forma pré-historicista, quando o tempo histórico não era ainda um fator essencial para o conhecimento, e menos ainda leva em conta a irredutível incerteza nas ciências humanas e sociais, compreendida sobretudo a partir da contribuição das ciências físicas e biológicas sobre a problemática do tempo (Prigogine, 2002 e Maturana,1980), e de Keynes (1936) na ciência econômica.
Frente a desafios concretos, os quais sempre se colocam para os gestores de projeto, revela-se que problemas práticos, a princípio tratados como problemas de planejamento, de ciclo de projeto ou mais especificamente como problemas de cronograma podem ser mais complexos e determinantes do que se poderia imaginar. Deste ponto de vista, poder-se-ia compreender que, ainda que os recursos financeiros sejam adequados, ainda que o planejamento tenha metas claras a atingir e que o conjunto das condições técnicas necessárias estejam dispostas, a capacidade real de execução de um determinado projeto pode sempre ocorrer diversamente do esperado e que problemas surgidos na implementação de certo programa de ações no “tempo de projeto” podem ter conseqüências relevantes sobre os resultados finais visados.
A problemática de uma abordagem da questão tempo-de-projeto configura-se no momento de exercitar o planejamento e depois na execução do cronograma, mesmo que dispositivos de otimização do uso de recursos e de geração de eficiência, incorporando limites externos e internos ao projeto, sejam praticados. Quando se torna problema de projeto, assume a feição de resultados não alcançados, ou de um cronograma que não se realizou, metas que não foram atingidas, levando a um processo de análise para detectar erro(s), obstáculos, responsabilidades e culpas. Entretanto, em muitos casos, dadas condições técnicas e operacionais necessárias, o problema frequentemente se situará na inadequação entre o volume de ações programadas e as condições objetivas e subjetivas existentes para o público-alvo recebê-las, incorporá-las, protagonizá-las.
Se for pertinente essa hipótese, deveríamos meditar um pouco mais sobre a própria a verdadeira natureza e função de um cronograma, bem como sobre a própria hipótese de um cronograma ideal de projeto. Concluindo pela necessidade de se apurar a técnica na elaboração destes cronogramas, caberia examinar se haveria instrumentos conceituais e analíticos que poderiam ser usados para definir ou obter um cronograma que gerasse as melhores condições de sucesso de um projeto, que pudessem evitar ou contornar problemas de implementação, seja no ambiente de gestão do projeto, seja no ambiente de recepção dos benefícios que por ele deveriam ser gerados.
O problema se situa, portanto, no campo da definição, do planejamento e da execução das ações de um projeto no que se refere à sua temporalidade. Havendo quase sempre várias combinações possíveis, a rigor múltiplas combinações envolvendo as ações projetadas e viabilizadas com recursos financeiros e institucionais, qual seria aquela ou aquelas que portariam as melhores condições de sucesso para o projeto, dadas e consideradas as determinações existentes no ambiente institucional, político, social? Qual o ritmo ótimo de ações de projeto considerando as realidades internas e externas?
São questões que surgem tendo em vista que o objetivo último deste tipo de projeto são as transformações almejadas – o “desenvolvimento” – e não a sua mera execução, o que vale dizer que a meta maior não pode ser a realização do projeto em si mesmo. Deveria tratar-se de um quase truísmo afirmar que o objetivo de um projeto deve ser a transformação por ele esperada e não a sua própria implementação no tempo inicialmente projetado. Mas, se tal reflexão não é considerada, se ela não é levada em conta, ao gerente de um projeto pode perfeitamente parecer mais relevante a execução físico-financeira do que a eficácia transformadora do processo.
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Gestores e líderes de projetos ocupam o lugar daquele que identifica recursos e estabelece o compasso de tempo que controla sua entrada em cena visando a produtividade ideal e melhores resultados. Supondo que os resultados a atingir estejam claros para os atores, as perguntas se referirão a como manobrar, no interior do planejamento de ações do projeto, a definição de usos de recursos e dos movimentos a serem produzidos.
Todo projeto de desenvolvimento, seja de realidades sociais (um arranjo produtivo, um segmento de cadeia produtiva, um território, uma comunidade, etc.), seja de instituições (uma entidade pública ou empresarial, uma organização social, um sistema operativo de Estado, etc.), envolve um amplo leque de atores, diretos e indiretos, processos e realidades que se interpenetram como forças interativas. O projeto, se relevante, torna-se uma destas forças, no cenário de conflitos e alianças que caracterizam as sociedades abertas. Desta forma, tão mais democrático e desenvolvido o ambiente, tanto mais participação haverá na definição do seu rumo, num processo rico, pleno de problemas e soluções colocados na sua operação. Como deveriam os gestores dos projetos articular a mobilização dos recursos disponíveis de forma a produzir de maneira ótima os resultados que se visa atingir, dado o ambiente sócio-cultural onde se inserem?
É imprescindível notar aqui que o problema formulado não é e não poderia ser resolvido por observações quanto a métodos de decisão. Seja a decisão de planejamento e organização temporal das ações absolutamente técnica, tomada no âmbito interno da atividade de projetação, seja a construção de agenda feita por meio de métodos participativos, seja em condições de comando central ou de abertura à construção coletiva, tais são considerações anteriores, de ordem filosófica e política, com implicações seguramente enormes, mas que não podem por si próprias eliminar ou resolver a natureza das perguntas aqui levantadas. Estes problemas existirão independentemente de contexto e de processo, se em condições de comando técnico forte, se em ambiente político fechado à autonomia dos atores, ou se em bases amplamente participativas.
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Em projetos que objetivam realizar uma “ação transformadora” de ambientes sociais, as atividades propostas, quando complexas, exigem um plano que as organize e dê maior coerência e eficácia. Todo projeto, ao ser preparado, normalmente começa por uma contextualização e justificativa, em seguida avança pela formulação metodológica, a qual deve traduzir-se num programa de trabalho, isto é, um elenco de ações. Este programa deve então se reportar a um cronograma e em seguida a um orçamento de execução. Esse é o esquema básico da construção de todo “projeto”.
Os problemas que buscamos identificar residem nesta interface existente entre a elaboração do programa de trabalho e o seu conseqüente cronograma. Alguns conceitos podem vir a ajudar na definição da programação e na sua transformação em cronograma. Ademais, como veremos adiante, deve-se pensar a programação de forma tal que comporte certa flexibilidade – especificamente no manejo do cronograma – exigida por uma irredutível imprevisibilidade de alguns fatores que são incontornáveis, existindo em praticamente todo e qualquer projeto de desenvolvimento, seja o seu objeto o desenvolvimento institucional, social, empresarial ou mesmo econômico. São alguns destes conceitos e algumas de suas implicações que este texto procura identificar.
A hipótese, que talvez seja de evidente obviedade mais à distância, mas para a qual não temos encontrado explícita sensibilidade, é perceptível quando se debruça sobre planejamentos concretos. O processo de planejamento será tão mais bem sucedido quanto melhor capturar, na programação das ações e em sua modulação temporal, as variáveis que permitem adequada implementação das ações. Quanto mais próximo a um ambiente específico, e quanto mais inovador for o processo, quanto mais complexo for o projeto, menos clara tende a ser a visão da programação mais eficiente e da temporalidade mais adequada.
As razões são muitas, mas provavelmente não estaremos distantes do essencial ao sugerir que isto teria a ver com a irrecorrível dimensão da temporalidade que envolve ações de transformação de pessoas, grupos e instituições – entes e entidades. Entes e entidades aprendem, aperfeiçoam-se ou deterioram-se – transformam-se, e todas estas transformações requerem certo “tempo”, um tempo que não pode ser acelerado indefinidamente, que, ao contrário, exige certa cadência ou certa intensidade de esforço para atingir os resultados visados. Que tempo é este, que circunstâncias podem alterá-lo? É possível ter uma melhor compreensão do tempo ideal para a introdução de inovações e modificações de processos num determinado ambiente, visando a sua eficácia?
Talvez o domínio em que este tipo de fenômeno tenha sido melhor percebido e esteja melhor teorizado seja no condicionamento de atletas, quando o conhecimento de uma data determinada para se atingir o pico do processo de preparação estabelece um sofisticado programa definido de forma retroativa. Inicia-se o trabalho de uma forma menos intensa e vai-se acelerando a introdução de esforços, aumentando a resistência e a potência, ampliando a elasticidade, enfim, trabalhando a construção daquela capacidade específica que deverá ter sua culminância no momento da competição mais importante. Depois desse ponto, geralmente tende a acontecer uma redução na capacidade esportiva dos atletas submetidos a esse tipo preparo. Mas, no que se refere a instituições e ambientes sociais, desconhecemos que tenha sido melhor estudado.
Um empresário pode introduzir novos métodos de gerenciamento de pessoal, de estoque, de caixa, mas qual é o tempo que esse percurso tomará dadas as condições culturais, de mobilização e de compromisso existentes em sua empresa? Outro empresário pode desejar se lançar na compreensão do papel do design nas estratégias empresariais e querer introduzi-lo na rotina da sua empresa visando a busca de mercados, mas qual será o tempo esperado para que sua empresa faça esse percurso de forma a ser mercadologicamente viável, economicamente rentável, ou para que demonstre sua inviabilidade? Que tempo tomará um desafio semelhante de introdução destas mesmas iniciativas num agrupamento de empresas, em coletividades empresariais? Tudo se torna ainda mais complexo quando se debruça sobre a análise de certo percurso para que um grupo de pessoas independentes entre si como empresários ou instituições independentes consigam criar um processo de ações coletivas com resultados eficazes.
Os exemplos citados acima são atinentes a uma modalidade de projetos de desenvolvimento – no caso de competitividade de grupos empresariais. É possível supor que eles multiplicam-s aos variados campos de projetos econômicos e sociais bem como às instituições. Envolvem na verdade as teorias do desenvolvimento social de uma forma ampla. Mas uma conceituação que torna a sua problemática inteligível não parece estar disponível para gestores de projetos.
Se nos perguntarmos sobre o tempo necessário para construir uma ponte de trezentos metros de vão, um edifício de apartamentos residenciais de três andares de altura com dois apartamentos por andar, uma fábrica de latas de cerveja, provavelmente um engenheiro especializado poderá responder com grau de precisão bastante satisfatório, dadas as dimensões do projeto específico. Se inquirirmos uma especialista em educação ou uma professora de matemática sobre quantas horas serão necessárias para levar uma criança da identificação dos números à resolução de sua primeira equação de segundo grau, possivelmente obteremos em algumas horas de cálculo uma resposta bastante satisfatória. Mas, se nossa pergunta for quanto tempo será necessário para um grupo de empresários preparar-se para uma expedição de conquista de mercado em uma feira internacional, atingindo as condições para cumprir os compromissos que poderiam eventualmente vir a ser ali assumidos, provavelmente a resposta virá com uma lista de requisitos que fazem parte do próprio problema.
Vejamos um exemplo imaginado para o domínio institucional, esfera que tem o particular de dispor de muito mais instrumentos de sensibilização, mobilização e imposição que os projetos envolvendo contextos sociais abertos. Suponhamos uma instituição voltada para o serviço público – uma entidade estatal ou para-estatal de formação profissional, um ministério gerador de ações de atendimento social ou de desenvolvimento econômico, por exemplo. Esta instituição, através de seus dirigentes, decide reestruturar ou recriar seus métodos de trabalho de forma a acrescer sua capacidade de gerar resultados. Essa recriação de formas e padrões de trabalho exige alteração de comportamentos, atitudes, rotinas e até mesmo visão, não apenas dentro de si própria, mas também envolvendo os seus parceiros na implementação de seus projetos e iniciativas. Como começar, como avançar, em que ritmo, da maneira mais adequada à geração dos resultados desejados?
Duas ordens de questões pelo menos se impõem, relativamente à seqüência ideal de ações, e, sobretudo o mais difícil, ao seu ritmo. Depois veremos que ainda se pode agregar uma terceira, que aparentemente deriva da segunda, mas que é distinta, referente à intensidade das ações.
Trabalhando em ambiente onde certa comunidade de atores tem de se envolver, abraçar e adotar padrões de comportamento diferentes daqueles a que está habituada, veremos que, ao serem produzidos processos, por sua própria natureza não-controláveis e irreversíveis, o destino do projeto dependerá do acerto razoável na seqüência e no ritmo destes processos, quando erros nessa área tendem a gerar reações de descrédito num momento em que o crédito é um dos fatores mais essenciais. Os processos de aceleração da transformação institucional ou comunitária remetem a pessoas e seus respectivos modelos mentais, paradigmas de comportamento interpessoal, profissional, empresarial e até mesmo social. Um planejamento de boa qualidade deveria considerar as diversas temporalidades dos diversos segmentos institucionais ou sociais envolvidos.
Este será provavelmente um domínio em que a teoria da gestão deverá testar, experimentar e avaliar, transformando experiência em conhecimento.
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Três conceitos básicos, portanto, configuram a problemática do tempo em projetos de desenvolvimento: seqüência, cadência e intensidade. A estes três se acrescentará um quarto conceito, o qual realiza uma espécie de contraposição influenciadora destes - prontidão.
Por “seqüência” entende-se o ordenamento e estabelecimento de anterioridades ou posterioridades de ações dentro de uma linha temporal em um projeto. Trata-se do elementar e prosaico exercício de reflexão sobre o que deve vir antes e o que deve vir depois num planejamento. Tende a ser o cenário mais fácil de ser visualizado e determinado, pois envolve apenas a determinação lógica de pré-requisitos para que algo possa acontecer e do que deve se seguir num determinado processo. No quadro abaixo exemplificamos o seqüenciamento na forma de um cronograma:
Cada uma das ações é realizada numa régua do tempo, seguindo uma lógica de seqüenciamento do projeto e do contexto no qual está inserido. Como é construido ex- ante, a lógica e a técnica da construção é sempre o resultado de indução, pois se refere ao cabedal empírico do formulador, que aplica aqui a matemática da soma de períodos, mais a contabilidade de um presumido período de realização de cada ação.
Aqui já surgem alguns aspectos fundamentais do problema do tempo nos projetos, porque, na maioria dos casos, as ações dos projetos de desenvolvimento envolvem eventos efetivamente técnicos, que possuem mesmo uma contabilidade temporal de cada um dos seus passos (a montagem de um estande ou a montagem de 200 estandes, como parte da montagem de uma feira, p.ex.). Entretanto, e esse é o aspecto fundamental, envolvem também ações que não se prestam plenamente à precisão de uma contabilidade temporal. Geralmente, essas ações são processos de interação entre as pessoas, isto é, as atividades de mútuo relacionamento que compõem o social propriamente dito. Refere-se ao espaço da convivência, caracterizado por um começar incessante, com o novo que vem sempre se apresentar entre os agentes e a partir deles. A ação se liga então, aos interesses de cada um, à conveniências, escolhas e circunstâncias, pari passu com uma multiplicidade considerável de variáveis e de complexidades relativas que não podem ser desprezadas. De alguma forma, é preciso ser dito, envolvem desejo1 - sendo num primeiro momento o motivo que a direciona e delimita. Referir ao interesse – e ao desejo – levará à dimensão inalienável do conflito, própria de toda pluralidade. Por extensão, à política num sentido amplo. Dizer do político significa dizer do lugar da lexis (fala), componente ineliminável da ação das pessoas nos espaços interativos. E quando impera o domínio da palavra, quando as palavras impõem suas próprias racionalidades ao rumo das coisas, o não-esperado e até o imponderável podem sempre emergir. Nesse âmbito, que é o âmbito da vida real e cotidiana das pessoas, a hegemonia da técnica (e dos técnicos), com sua capacidade de regular e controlar ações e atividades, garantindo-as como pré-estabelecidas e normatizadas dentro de uma estrutura funcional com vistas a fins pré-determinados, pode não funcionar e freqüentemente não funciona. Portanto, o projeto sempre se encontra na confluência dessas duas dimensões, a técnica e a pólítica. A competência na sua gestão nunca será a prioridade de uma dimensão sobre a outra, mas a “flutuação”2 entre uma e outra.
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Por “cadência”, entende-se o ritmo de implementação de ações de projeto. Dentro de uma seqüência supostamente ideal, existe uma temporalidade ideal de implementação das ações, onde as questões do aprendizado, da mobilização dos atores no ambiente de projeto deixam de poder ser tomadas como pressupostos e se tornam problemas a serem trazidos à reflexão. A simples definição da seqüência de ações, por mais bem planejada, por mais coerente, não leva em conta que as ações de projeto envolvem inter-subjetividades entre os atores, envolve sua capacidade de dedicação, de compreensão, sua disposição para o trabalho (auto)transformador – sem o que o processo de desenvolvimento pode ser ou otimizado ou tumultuado, freado ou acelerado. Esse processo de avaliação do grau ótimo de implementação dos movimentos transformadores pode ser pensado pelo conceito de cadência ou ritmo de projeto.
Vejamos alguns exemplos. Suponhamos que um projeto de desenvolvimento de uma certa coletividade empresarial requeira a realização de atividades de sensibilização e informação, essenciais para o desenvolvimento deste coletivo de empresários. Poder-se-ia supor num primeiro momento que um ritmo ideal de encontros coletivos para palestras e debates destinados a esta sensibilização e lançamento do movimento de trabalho conjunto, dado o tempo de projeto já pré-determinado, fosse, suponhamos, três vezes por semana. Logo poderá se perceber, lidando com os agentes reais – empresários envolvidos com a gestão de suas empresas, que eles recusarão um ritmo tão intenso e solicitarão que os eventos sejam mais espaçados no tempo. Qual seria então o novo ritmo? Uma vez por semana? Duas vezes por mês? Uma vez por mês? Qual será a cadência ideal de ações coletivas para informação e debate de estratégias?
À medida que se vai espaçando estas ações para atender à dificuldade de participação dos atores, se perceberá que, a partir de certo ponto, o clima de mobilização poderá ser comprometido. No exemplo acima, provavelmente, um encontro a cada três meses certamente não seria adequado por não imprimir um clima de trabalho, esvaziando e desmobilizando o projeto. Num processo de aproximação, experimentação e consideração iterativa de hipóteses poder-se-á chegar a um ritmo adequado para os determinados contextos.
O quadro abaixo apresenta os dois conceitos de forma gráfica, de modo a diferenciar claramente um do outro. Observa-se que a linha da cadência, no exemplo aqui apresentado, repete ações, bem como poderá prolongá-las no tempo, sempre que o contexto do projeto assim exigir, com os intervalos entre uma e outra atividade também podendo variar por razões que podem ir da absorção dos atores em outras atividades externas ao projeto a problemas de conflito, ausência de consenso, turbulências causadas por razões de cunho político, e tantas outras causas que surgem na interface entre o projeto e a vida social.
O terceiro conceito – certamente dos quatros propostos o menos determinante –
refere-se à “intensidade”, a qual abre a consideração do índice de concentração de recursos no tempo. Quanto mais recursos se utilizar num determinado período de tempo, maior será a intensidade de projeto, e, quanto menos recursos, menor será a intensidade. A intensidade é dimensionada pela concentração de uso de recursos no tempo, o que implica necessariamente recursos de toda ordem (humanos, financeiros, operacionais, técnicos, entre outros), além de planejamento e logística. A tendência dos projetos é produzir uma curva de intensidade crescente, com queda acentuada no final (curva assimétrica negativa) ou com dois picos de intensidade (tipo bimodal).
Quanto mais recursos se concentram num determinado período de tempo, mais intenso se torna o projeto. A tendência é a concentração de ações de alta intensidade em determinados momentos, envolvendo o uso de muitos recursos em curto espaço de tempo. A prática e a prudência sugerem que, nesses momentos, não deverão estar previstas seqüências de várias ações de alta intensidade, sob o risco conduzir ao esgotamento dos agentes institucionais, sociais ou empresariais. A alternância no cronograma do projeto entre ações de baixa, média e alta intensidade provavelmente tenderão a permitir uma gestão com resultados mais sólidos, a menos que se esteja em situação de elevado grau de compromisso e de submissão dos interesses pessoais dos atores aos objetivos de projeto.
Este conceito visa permitir um planejamento de ações de naturezas diversas que devem se suceder ou coexistir no tempo. Parece um conceito menos relevante que os conceitos de cadência e seqüência, mas pode-se perceber que não se refere exatamente à mesma natureza de questões. Dentro de uma perspectiva de gestão de conhecimento, parece razoável afirmar que um projeto deve alternar momentos de alta e baixa intensidade, de uso de recursos externos aos próprios atores na comunidade (tais como as consultorias de variadas espécies), para otimizar a evolução de uma comunidade-alvo. Um planejamento que suponha uma hipótese de intensificação linear e progressiva até um momento culminante pode levar ao comprometimento do clima de trabalho. Parece sensato que o planejamento considere de antemão a possibilidade de períodos de intensificação a períodos de “desintensificação”, permitindo que o ambiente de projeto, social ou institucional, possa repercutir sobre o processo de planejamento, ajustando-o às suas capacidades ou predisposições momentâneas.
O quadro acima tenta expressar graficamente a diferença dos três conceitos, mostrando, no volume dos cubos da intensidade, a diferença de uso de recursos em cada uma das ações, numa seqüência e sob cadências dadas. Observa-se que a ação 5 requer mais volume de recursos que todas as outras e, por isso mesmo, deve se colocar num momento posterior na linha do tempo, e ser menos repetida na linha da cadência. Situação contrária tem a ação 2, que tem menor de intensidade e portanto pode ser repetida em um ritmo maior na linha da cadência.
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A estes três conceitos deve-se acrescentar uma problemática relativa à predisposição, a aceitação íntima, capaz de gerar comportamentos modificados por parte dos agentes – indivíduos e instituições – envolvidos no projeto. De forma diferenciada por ambientes e instâncias, as pessoas estarão mais ou menos prontas a aceitar colocar em questão o seu próprio lugar, seus hábitos, seus métodos usuais para que o projeto avance, se consolide e tenha eficácia. Esta predisposição terá sempre influência decisiva sobre o projeto – seu avanço, seus sucessos, seus tropeços, seus fracassos – e essa influência será tão mais relevante quanto mais democrático for o ambiente de implantação de projeto.
Trata-se, portanto, de um conceito que deverá ser visualizado na forma de um anteparo, frente ao qual ficariam os três primeiros conceitos, influenciando a configuração que emana da conjugação entre eles, e denotando a capacidade dos atores em responder aos estímulos gerados pelo projeto. Maior ou menor será esta predisposição e mais decisivamente o projeto deverá ser influenciado, seja na programação seqüencial de ações, mas, sobretudo, na cadência de projeto. Prontidão pareceu-nos ser um conceito adequado para identificar este problema. Ele indicaria a predisposição e o domínio das capacidades habilitadoras específicas de um determinado grupo de atores de projeto para se tornar ator e objeto da ação transformadora.
A maior parte dos projetos de desenvolvimento institucional ou social, sabendo intuitivamente dessa realidade essencial, principiam por uma fase de sensibilização. Mas seria ingênuo supor que, uma vez que o público tenha sido sensibilizado, o problema da prontidão desapareça de vez. Mais provavelmente, ele ressurgirá à medida que o ambiente de projeto evolua e que novos desafios de crescimento e transformação sejam colocados, à medida que obstáculos pertencentes ao próprio processo de desenvolvimento se interponham.
Ao identificarmos por “prontidão” o conceito que poderia de forma adequada nomear esta problemática essencial ao planejamento, deparamo-nos com uma controvérsia histórica que teve certa relevância na história da pedagogia em torno do conceito de “prontidão”.3 A pesquisa dos precedentes de seu uso no âmbito da pedagogia revela que este conceito produziu considerável polêmica. Embora o conceito provavelmente tenha origem no ambiente militar, remetendo ao estado em que determinado grupamento militar se coloca na iminência de ações de combate – prontidão implica em estar pronto para o combate -, na pedagogia ele derivou inicialmente para uma tentativa de determinação de habilidades e conhecimento requeridos para que o aprendizado pudesse acontecer4. Como esta leitura teve uma forte interpretação naturalista, gerou muita reação nas pedagogias não-deterministas e democráticas, baseadas na consideração das necessidades específicas de cada grupo social. No sentido que estamos propondo, a prontidão num projeto de desenvolvimento não se referirá apenas a uma dimensão individual e dada de capacidade de resposta a partir de um estímulo, mas a um ambiente coletivo, grupal, de interiorização da vontade e da predisposição à ação transformadora. Outro conceito poderia talvez evitar a polêmica que praticamente o eliminou das ciências da educação, mas o fato é que não encontramos nenhum mais adequado.
Para tentar exemplificar graficamente a hipótese, apresentamos o gráfico abaixo como aquilo que poderia surgir da incorporação da prontidão ao processo efetiva de implementação de um projeto, devendo ficar claro que não acreditamos que o conceito possa ser totalmente previsível num processo de pré-definição de cronograma em fase de planejamento de projeto.
Na forma como tentamos exprimir a evolução da prontidão, num primeiro momento, o de sensibilização, ela pode elevar-se rapidamente pela esperança de crescimento e pela expectativa de benefícios a serem proporcionados pelo projeto que se inicia. Na fase seguinte, à medida que a metodologia do projeto se revela mais claramente a todos e os beneficiários percebem que benefícios dependerão de elevado grau de esforço, à medida que constatam não há transferência de recursos pecuniários mas apenas de conhecimento, a prontidão tende a cair significativamente. Depois, à medida que os atores percebem que os mais interessados tendem a recolher resultados do conhecimento adquirido, à medida que outras melhorias geradas pelo projeto são constatadas, um clima de maior prontidão tende a ser retomado. Mais adiante, por uma crise conjuntural, uma recessão, ou por divergências internas à governança do projeto, a prontidão poderá cair novamente, mas provavelmente a um nível mais elevado que na primeira crise. E assim flutuará, provavelmente sempre enquanto durar o projeto, pela natureza mesma dos processos sociais e da psicologia dos atores.
Observa-se que as ações de maior volume (6 e 5), que são as de maior intensidade, devem ser realizadas nos momentos de maior prontidão e as de menor intensidade (1 e 2), podem sê-lo nos momentos de menor prontidão. Da mesma forma, a cadência leva em conta a prontidão, já que as ações podem se repetir exatamente quando ela se intensifica.
De posse destes quatro conceitos – seqüência, cadência, intensidade e prontidão – é possível criar condições para uma aproximação mais enriquecida da complexidade do problema do tempo em ambientes de projetos de desenvolvimento. Eles constroem uma problemática que parece ser mais complexa do que aquela expressa pelo conceito de cronograma; na verdade, são conceitos que permitem apreender a verdadeira complexidade do problema aparentemente simples do cronograma. Trata-se da questão do tempo em um projeto, mais precisamente a problemática do manejo ideal, em determinados contextos, de recursos e ações em um cronograma de projeto.
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Que conceito teríamos para sintetizar e exprimir essa problemática ampla?
O conceito inglês de timing se aproxima razoavelmente da problemática, mas parece expressar realidades menos complexas do que os problemas aqui identificados. Denota a idéia de um “tempo certo”, de acontecimento no momento adequado, ou apenas de um ritmo adequado para algumas ações. Não parece remeter a uma complexidade suficiente para englobar a compreensão de ações realizadas na seqüência correta, numa cadência ideal e envolvendo adequada intensidade, contra prontidões variáveis.
Um neologismo transportado da palavra italiana tempistiche poderia talvez sugerir um pouco melhor a complexidade da problemática. Embora no italiano a palavra tenha o significado de cronograma, ao ser transportada para o português remeterá semanticamente à idéia de um teoria do tempo ideal de implementação das ações e transformações de um projeto num dado ambiente. Seu parentesco fônico com o conceito de logística, que se refere à ciência da gestão das diferentes modalidades de recursos para produzir movimentos optimais, buscando compatibilizar as dimensões de custo, tempo e qualidade, poderia sugerir semelhante complexidade relativamente ao planejamento de um projeto no tempo. Tempística sugeriria uma teoria e remete aos problemas da implementação de um projeto, no seqüenciamento correto, sob adequada cadência, com intensidades ótimas.
Projetos de desenvolvimento são projetos de transformação. Uma enorme quantidade de iniciativas fracassou ao longo da história pelo fato de terem os seus formuladores e gestores ignorado a questão.5 Talvez isto exprima o fato de que o problema do tempo tenha sido um dos menos desenvolvidos numa série de domínios teóricos. Na teoria econômica, por exemplo, a questão do tempo foi praticamente eliminada da Economia Política a partir da segunda metade do século XIX em grande medida pela hipótese de automatismos em movimentos mutuamente equilibradores. Não deveria surpreender, portanto, que a teoria do desenvolvimento tenha ignorado em grande medida a necessidade de desenvolver clareza sobre a problemática do tempo na transformação de situações dadas. Ainda que não fosse questão de relevância precípua – o que pode não ser o caso, não pareceria inútil identificá-la no momento de formar e orientar gestores responsáveis por projetos e planejadores responsáveis por sua concepção. Afinal, o objetivo de transformar uma realidade através de projetos que desencadeiam situações de irreversibilidade6 freqüentemente encontra seu sucesso ou seu fracasso determinados no processo mesmo em que são implantados.
Erros na seqüência tendem a produzir efeitos contraproducentes no processo de preparação para a transformação. Erros na cadência tendem a gerar ora resistências, irritação e estresse, ora desânimo, distração e desmobilização. Erros na intensidade tendem a desperdiçar recursos ou a não aproveitar o ímpeto transformador do público-alvo. Há algumas décadas vem sendo afirmado em certos ambientes dedicados ao planejamento social que a adequada gestão do tempo seria uma das inovações relevantes a serem exploradas na sociedade pós-industrial. Esta reflexão tem a expectativa de contribuir, ainda que muito modestamente, a esta evolução necessária.
Deve ficar absolutamente claro, entretanto, que não supomos que os conceitos propostos possam ser usados de forma a tornar o processo de planejamento capaz de incorporar toda a imponderabilidade gerada pela interveniência de fatores externos à gestão do projeto, servindo, portanto, para um planejamento totalmente determinado ex-ante. Tal interpretação conteria o mesmo vício tecnocrático que nossa análise atribui à ignorância do fator tempo como um relevante problema de projetos. Nosso objetivo é levar a uma mais acurada compreensão da complexidade do problema e, através dos conceitos propostos, sugerir a necessidade de se introduzir uma necessária flexibilidade na boa gestão de um projeto complexo, envolvendo atores sociais e econômicos. Neste sentido, a verdadeira tese do artigo não seria a defesa de uma possível hiper-racionalidade gerencial ex-ante, na verdade, bem ao contrário, a busca da explicação da racionalidade que requer, para uma boa gestão, criar margens de manobra durante o processo de execução.
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