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Sustentabilidade são atitudes

Foto do escritor: P&A Consultores AssociadosP&A Consultores Associados

Intrigante: de todos os lados por onde se aborde assuntos relevantes do mundo contemporâneo, surgem questões éticas. Quase todos os grandes temas do mundo atual envolvem questões que remetem à moral das atitudes.


Grandes desafios trazem dilemas, grandes dilemas envolvem temas éticos. O desafio da sustentabilidade é certamente o maior desafio hoje posto à humanidade, maior mesmo do que a erradicação da pobreza extrema, campo em que se avançou muito desde o século XIX. No campo da pobreza, os avanços são impressionantes. A desigualdade na apropriação de riqueza virtual é elevada, mas na riqueza social as coisas não se passam tão mal. Ao longo do século XX, a miséria foi praticamente extinta no mundo desenvolvido, diminuiu significativamente na maior parte dos países emergentes – Ásia e América Latina, e em décadas caminhará para estar limitada a bolsões em algumas regiões do mundo. Mantendo a velocidade com que o mundo caminhou nos últimos duzentos anos, a pobreza extrema estará virtualmente extinta antes do fim deste século. Programas de transferência de renda cuidarão da fração remanescente.


O verdadeiro desafio da humanidade está em outro campo: manter o nível de crescimento econômico dos últimos duzentos anos, sem prejudicar as condições de reprodução da vida humana no planeta. Quase certamente, as taxas de crescimento declinarão e a razão básica é que a natureza, base de toda riqueza e riqueza em si, começou a escassear relativamente às necessidades de uma população já enorme e ainda crescente, com elevada capacidade de consumo – e, o mais grave, habituada a querer sempre um pouco mais, medindo a qualidade de sua situação pessoal pelo aumento de seu consumo. As oportunidades de grandes empreendimentos irão escassear, os custos ambientais se tornarão cada vez mais significativos, a tecnologia vai ter de se esforçar para reduzir estes custos. Essa engrenagem, se bem equacionada, proporcionará um futuro próspero, até porque boa parte da humanidade já não precisa de tanta riqueza a mais, a não por razões comparativas – para não se sentir diminuída perante os outros. Esse milênio que se abre poderia vir a ser maravilhoso, na intuição de Jacques Le Goff, o medievalista francês que em toda sua vida estudou o milênio anterior. O ‘desafio da sustentabilidade’ alcança todos os países, e quanto mais rico for um país, quanto maior sua pegada ecológica, maior será o desafio de reduzir seu nível de ‘insustentabilidade’ em longo prazo. E não se pode admitir que países com maior pegada ecológica mantenham o privilégio de ser o primeiro a chegar. Serão chamados a pagar por esse custo adicional. Lugares privilegiados não serão admitidos como definitivos.


Uma economia sustentável é a que tem processos compatíveis com o longo prazo, na escala de décadas senão de séculos. A economia não poderá seguir vivendo de depauperar sua base natural. As “cicatrizes” das atividades econômicas passadas e atuais terão de ser tratadas; a agricultura precisará manter (e até aprimorar) a fertilidade do solo. Será necessário investir para preservar a hidrologia, pois a água é recurso essencial e, quando escasseia, só em prazos demasiado longos em relação à necessidade, volta a ser abundante.

Uma economia sustentável terá de ter cidades onde se desloque com fluidez, serviços sociais que atendam às necessidades da população, emprego adequado para a virtual totalidade da população e aqueles que tenham fracassado nos processos produtivos normais serão minimamente amparados pelos mecanismos de transferência de renda do Estado. A humanidade construiu um mundo fabuloso, atingiu todo o planeta, está inteiramente interligada, movimentando uma massa de recursos gigantesca para alimentar, vestir, transportar e divertir a população do planeta. O desafio deste século vai ser produzir e consumir um fluxo de riquezas que seja compatível com a base de recursos à disposição. Essa base, está escasseando frente às necessidades, está ficando pequena relativamente à população. A sustentabilidade é alcançada ao adequar-se a base de recursos existentes a necessidades e demandas.


Essa compatibilização entre necessidade/demandas e disponibilidades/oferta é feita, em parte, pela tecnologia, que busca economizar recursos, combina o conhecido à criatividade para produzir soluções novas. A tecnologia cria alternativas. Até agora nós só trabalhamos seriamente esse domínio. Acontece que, quando a tecnologia não supre plenamente as necessidades, ela tem de ser completada por uma disciplina das atitudes individuais e coletivas, hábitos que as políticas públicas, o esforço social e os debates ideológicos vão forjando nas pessoas. A adequação pode vir pela tecnologia, que faz mais com menos, encontra suprimentos alternativos, ou pode chegar pela ponta do consumo, onde uma maior moderação certamente será favorável à solução dos problemas. O ideal, óbvio, é que ambas se combinem, pois as atitudes tornam menos pesada a tarefa da tecnologia.

As escalas de reprodução da economia mundial se tornaram de tal forma significativas que, para manter esse nível de produção e para prosseguir na incorporação das populações que estavam antes fora do mundo do consumo, um esforço intenso terá de ser feito para desenvolver uma atitude de responsabilidade ecológica por parte das pessoas.


A dificuldade deste tipo de avanços pode ser estimada pelos impasses nas discussões sobre mudanças climáticas. No momento em que a construção da sustentabilidade passa a envolver custos que impactam os níveis de crescimento dos países, quando custos têm de ser arbitrados entre povos diferentes, as resistências se tornam enormes, a tendência a tentar transferir custos de uns para os outros se torna forte, avanços se tornam lentos.

Enquanto isso, o mundo segue tentando crescer. Quando não cresce, o problema aparece de outro lado, que para muitos o desemprego é problema maior e mais sério, pois não se construiu solução satisfatória para ele numa sociedade que se organiza em torno do trabalho social. A população atingirá de 9 a 10 bilhões de habitantes até a metade deste século, quando estará em vias de estabilização. Proporcionar vida digna a toda essa gente vai movimentar uma enorme quantidade de recursos. Enquanto uma parte relevante da população do mundo não tiver acesso às principais comodidades, a economia seguirá pressionando para produzir a quantidade que permitirá aos novos consumidores ter acesso aos bens que passaram a desejar. O capitalismo tem sobrevivido deslocando para mais longe os horizontes de consumo possível. Enquanto essa fronteira – a do consumo – estiver expandindo, as necessidades e as demandas seguirão se ampliando.


Esse movimento de expansão rumo à virtual totalidade dos consumidores é inexorável e decorre da combinação entre a lógica do desejo humano e a lógica dos empreendimentos privados. As pessoas lutam para melhorar suas condições de vida e para isso estão prontas para produzir mais, e para consumir tudo que for produzido a mais. Enquanto houver pessoas buscando ascender, lutando para melhorar de vida e para isso se dispondo a trabalhar com afinco, essa lógica se impõe.


Impulsionada por esse processo quase que inexorável, movido a desejo e expectativas, a economia mundial seguirá aumentando o consumo de energia e recursos naturais. Enquanto os estratos sociais mais ricos seguirem aumentando seu próprio consumo, um impulso de emulação desce das classes abastadas às classes médias e daí às mais pobres, as classes emergentes buscando imitar o consumo dos mais ricos. Enquanto os abastados continuarem aumentando sua ‘pegada ecológica’, os estratos sociais mais baixos pressionarão para ter acesso, ainda que mitigado, a esse estilo de vida. A engrenagem econômica põe-se em marcha a partir desse impulso básico, visceral, telúrico, se me for concedida uma licença poética.


Em algum momento, para se tornar sustentável, a humanidade será obrigada a considerar, pensar e comportar de forma compatível com a percepção de que seu padrão de consumo privado já se tornou razoável, que ele basta no essencial, e que mais importante doravante será consumir coisas que geram qualidade de vida sem criar problemas novos - externalidades negativas - para o meio ambiente e a sociedade. Deveremos consumir cada vez mais bens ou serviços que possam ser compartilhados, bens cujo usufruto por uns não é incompatível com o usufruto pelos outros, assim como formas de riqueza que podem ser reproduzidas com menor custo em recursos naturais, de preferência que beneficiem ao maior número. Deveremos reduzir o consumo de coisas pouco úteis, que geram lixo, usam energia ou materiais demais. Há formas de riqueza cujo desfrute por uns não conflita com o desfrute por outros. Informações, espaços públicos, conhecimento sob a forma digital e bens coletivos são algumas dessas formas. Esses tipos de riqueza deverão se expandir, enquanto as formas privadas de riqueza deverão caminhar para a estabilização ou mesmo, numa situação mais avançada, para a regressão.


O objetivo de vida das pessoas deverá ser menos autocentrado para se tornar mais coletivo, mais social, mais solidário, menos competitivo por riquezas distintivas. O benefício público das ações privadas deverá adquirir relevância crescente. Os processos do Estado sofrerão escrutínio cada vez mais vigilante e mais severo. Ganhos pessoais terão de, em algum momento, prestar conta ao interesse público, como forma de adquirir maior legitimidade. Isso implicará a redução do consumo de certos tipos de bens e serviços, e exigirá uma parte maior dos nossos orçamentos para investimentos em bens públicos. Impostos tenderão a aumentar, a não ser que os gastos do Estado sejam revistos em profundidade e, mais provavelmente, ambas coisas acontecerão. A sustentabilidade virá da conjunção entre uma elevada produtividade e a expansão de riqueza social de natureza pública (atenção, riqueza pública pode ser, mas não necessariamente é estatal).


Este movimento já se iniciou. Os países mais avançados do mundo são, e não por coincidência, aqueles onde tais tendências se apresentam mais claramente. A evolução da humanidade já está em marcha. Ela implicará em transformações significativas nas formas de se relacionar e nos valores compartilhados. Trata-se de uma transformação de valores éticos em escala humanitária.


Para que o processo avance na velocidade com que as exigências estão se apresentando, a mudança climática sendo a urgência mais aparente, não se pode deixá-lo apenas no espaço do diálogo político. A transformação se refere a comportamentos sociais e, quanto mais claramente forem trabalhados nas instâncias de formação ética, como escolas, igrejas e associações sociais, de caráter político ou não, mais rápido e consistente será o processo. O âmbito mais importante, aquele em que a sociedade consegue ter algum controle do processo e acelerá-lo, é evidentemente o processo educativo. Educação, é onde se forjará a aceitação voluntária dos constrangimentos econômicos que afetam a todos.


É preciso ter clareza que essa transformação, já existente em germe nas engrenagens do mundo atual, tem, contudo, dimensão de uma mutação histórica. Ela não deriva da lógica normal da vida, não é fruto de um impulso instintivo forte, embora tenha coexistido ao longo das eras, em alguma medida, com as tendências que levaram a um mundo organizado em torno de interesses privados. Essa mutação decorre de necessidades externas, algo que vem de fora do mundo dos homens para dentro. Esse impulso de transformação, que vem da sociedade para o indivíduo, é de natureza moral.


Num determinado momento da história, alguns séculos atrás, conhecer a natureza, dominar seus segredos e explorar suas potencialidades foi a coisa mais importante a se fazer, na vida e na escola. Visava preparar os jovens para explorar o mundo da ciência, que era a grande carência. Nestes quinhentos anos de modernização, contudo, as carências vieram se deslocando da necessidade material para o domínio relacional. No início da modernidade a riqueza era escassa e a moral abundante, terrivelmente abundante, se nos lembrarmos da Inquisição. A era moderna emergiu com a humanidade se lançando à produção, ao comércio, à invenção, à despeito da moral. Foi sem dúvida bom, pois a moral herdada espalhava dor e sofrimento, gerava iniquidades de toda sorte.


Hoje, a coisa mudou. O lado material da vida caminha para ser menos relevante do que a construção de novas atitudes e o compartilhamento de valores sociais. Os maiores ganhos virão cada vez menos da evolução tecnológica. Nesse domínio, o da técnica, avanços seguem pouco significativos em relação às necessidades, o sistema produtivo segue avançando com inovações que, quase sempre, apenas criam necessidades novas. As soluções de sustentabilidade requererão opções de consumo diferentes e formas novas de investimento da riqueza pessoal. Ao fim e ao cabo, a modernidade vingou, atingiu seu apogeu – e a balança pendeu para outro lado.


As pessoas deverão estar predispostas a aplicar parte crescente de seus recursos em produtos que serão mais caros, mas menos prejudiciais ao meio ambiente. O ciclo de vida de cada produto será dissecado e suas consequências assimiladas e incorporadas pelos usuários. As pessoas deverão optar por formas de energia menos agressivas à natureza. Aceitarão pagar mais impostos para ter bens públicos de melhor qualidade e o Estado, em contrapartida, aceitará o exame de suas decisões estratégicas e, sobretudo, de seus gastos correntes.


Tudo isso são atitudes, decisões e opções individuais e coletivas baseadas em dimensões éticas. Não haverá como fazer isso sem envolver amplamente o sistema de formação da cidadania, cujo maior subsistema é a educação pública e privada. De forma crescente, a dimensão ética permeará de forma cada vez mais profunda as formas de difusão cultural e ideológica.


Nesse meio milênio de era moderna as grandes esperanças de evolução social foram depositadas na técnica e na tecnologia – e isto fazia todo sentido. Lutar contra esta tendência quase sempre foi retrógado, prejudicava a prosperidade das nações, povos e pessoas. Deslocar a esperança de bem-estar depositada nas religiões para a expectativa de conhecimento científico e técnico foi a base da modernidade. Mas, hoje, a técnica gira, cada vez mais, em torno de si própria. Ela encontra uma série de dificuldades para transformar a sociedade na direção do que é realmente necessário. A maior parte de seus impulsos resulta em empurrar o processo para frente mantendo tendências passadas.


A técnica certamente pode ainda oferecer muito, mas, hoje, frequentemente parece “mais do mesmo”, apenas incrementalmente melhor. O direcionamento da técnica e do consumo por reflexões de cunho ético será o próximo grande momento da humanidade. Isso exigirá uma retomada da educação moral de toda a sociedade, pois ninguém duvidará que é pelas crianças e jovens que é mais fácil começar. A escola, essa instituição já quase milenar, e que nunca cessou de transformar a sociedade, deverá ser o protagonista essencial – mas fazendo algo que a escola brasileira parou de fazer (e já fazia muito mal feito) há trinta anos, que é uma educação ética – o conceito é “educação moral”- voltada para tais objetivos.


Uma educação moral contemporânea abordará as regras da civilidade social, os valores da retidão pública e privada, a igualdade dos direitos de gênero, a relevância dos deveres internalizados para o bom funcionamento de toda a sociedade e, sobretudo, as atitudes da sustentabilidade. Curiosamente, foi nesse último campo que a educação brasileira avançou um pouco. Mas a questão é mais ampla que só sustentabilidade e ela deve fazer parte de uma filosofia moral mais ampla: a filosofia de uma sociedade livre, justa, equânime e sustentável.


Talvez seja nesse domínio que se definirá a próxima era histórica. Se fracassarmos nesse campo, o futuro se tornará imponderável, enfrentará riscos crescentes, conflitos possivelmente cada vez mais fortes. Esse é certamente um cenário a evitar a todo custo, pois as consequências seriam duras.


 
 
 

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