
Renato Caporali *
“A análise do desenvolvimento apresentada neste livro (...) atenta particularmente para a expansão das “capacidades” das pessoas de levar o tipo de vida que elas valorizam. Estas capacidades podem ser aumentadas pela política pública, mas também, por outro lado, a direção da política pública pode ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades participativas do povo.”
Amartya Sen, in Desenvolvimento como Liberdade.
A temática “pymes”: de política compensatória a política de desenvolvimento
Para se avaliar a dimensão do avanço feito pelo Brasil nos últimos vinte anos no campo das políticas de desenvolvimento, que culminaram na construção de uma articulada, ampla e efetivamente eficiente do que se convencionou falar de knowledge economy, capaz de atingir cifras próximas da casa do milhar de sistemas produtivos locais1, com potencial de atingir outro milhar de municípios – temos 5.500 2-, é preciso antes identificar no bojo de que outros avanços de política pública ocorreram no país em suas políticas para os empreendimentos de pequeno porte. Porque clusters e pequenas empresas – seja lá o critério para se defini-las – são totalmente indissociáveis.
Com efeito, alguns significativos avanços foram realizados, nas últimas duas décadas, no sentido de transformar o apoio à pequena empresa de políticas de cunho tipicamente compensatório em efetivas políticas de desenvolvimento. Grande parte das políticas e instituições de apoio a pequenas empresas na América Latina, senão todas, nasceram sob um forte viés de assistência compensatória às deficiências da empresa de pequeno porte. Talvez, por estas instituições e políticas terem nascido em ambientes ideológicos anti-monopolistas amplamente disseminados na cultura econômica mundial, ora sob a influência do institucionalismo norte-americano ora pelo marxismo, dos desdobramentos da luta contra a hegemonia dos grandes monopólios, tidos como essência mesma do processo de desenvolvimento, as políticas de apoio a pequenas e médias empresas procuravam tão somente dar às pequenas empresas os meios de evitar a dominação dos conglomerados monopolistas e sua conseqüente morte por asfixia. Não se via os sistemas de pequenas empresas como possível foco de desenvolvimento.
Numa América Latina avessa ao pragmatismo, mais inclinada ao proselitismo do que à ação focada em resultados, as instituições de apoio a pequenas empresas se limitavam a construir iniciativas de treinamento técnico básico com informação dos conceitos administrativos básicos, iniciação em temas financeiros, sem uma análise mais aprofundada das formas de inserção da empresa no sistema produtivo, nas cadeias de valor e de distribuição da qual - consciente ou não - fazem parte. A ausência de visão do sistema concorrencial, das estruturas de mercado e dos padrões tecnológicos capazes permitir a percepção do processo evolutivo e dos desafios que a empresa enfrenta acabava por resultar num discurso por demais idealista, estrita e ingenuamente reivindicatório, na verdade, uma sucessão monótona de queixas sobre “la fraqueza de las pymes”. Incapaz de produzir uma abordagem científica das formas de inserção competitiva, de ameaças e possibilidades, desafios e limites das pequenas empresas nas cadeias de valor, esse discurso acabava por deixar intocadas as enormes possibilidades dos sistemas produtivos de pequenas empresas como fator de desenvolvimento.
Ao longo da última década do século, à medida que a reflexão sobre uma concepção alternativa para o desenvolvimento era introduzida em alguns organismos internacionais para o desenvolvimento, processo que finalmente resultou nesse interessante neologismo que foi a “glocalização”, uma significativa mudança de enfoque começou a surgir nas poucas instituições de excelência em políticas para pequenas empresas da América Latina. A incapacidade da visão anterior de produzir resultados já vinha sendo percebida. Os encontros de entidades de suporte de pequenas empresas haviam se tornado uma espécie de Muro das Lamentações contra a insensibilidade de tudo e todos em compreender a importância das pequenas empresas e prover-lhes o apoio à sua sobrevivência. A tendência a uma visão autocomplacente e laudatória predominava sobre uma visão mais inquiridora, mais técnica e, afinal de contas, menos derrotista. O discurso tinha se esgotado, a visão revelara seus limites e seus estreitos potenciais já tinham sido alcançados. Alguma coisa tinha de mudar. No fim dos anos 90, uma nova geração de dirigentes começou a desenhar um novo paradigma. Sem sacrifício da dimensão idealista própria ao ambiente de trabalho com pequenas empresas, muitas das instituições foram se lançando na empreitada de conferir uma dimensão mais objetiva, baseada numa concepção estrutural da inserção das pequenas empresas nos sistemas produtivos.
Desse processo resultou um desenho novo das políticas de apoio a pequenas empresas.
Um pressuposto: foco institucional
A primeira e significativa alteração foi a concentração de foco nas micro e pequenas empresas, deixando de lado, ou envolvendo-as apenas como beneficiárias indiretas em cadeias produtivas, a jusante ou a montante, as médias empresas. Foi um deslocamento extremamente importante, um marco de balizamento, pois a problemática das micro e pequenas empresas difere substancialmente da problemática das médias empresas. A problemática das médias empresas fica, de modo geral, mais próxima da problemática das grandes empresas do que das pequenas. A necessária linha divisória, pelo fato de as políticas envolverem subsídio nas suas mais diversas formas, deve de fato ficar entre a pequena e a média. Médias e grandes devem ser envolvidas, são parte essencial – geralmente o motor –, mas não precisam ser beneficiárias de subsídio, pois têm condições de pagar pelo conhecimento que as políticas devem transferir de forma subsidiada. Enquanto isso, o subsídio é necessário porque a demanda de conhecimento em sistemas de pequenas empresas tem uma dimensão de custo que ultrapassa sua capacidade, e não só a disposição de pagamento, por seu custo elevado. A vida da pequena empresa na América Latina é uma luta permanente pela sobrevivência.
Foi essa evolução - a separação da média empresa de micro e pequenas como alvo de política - que permitiu aquele que foi talvez o maior avanço conceitual da política pública brasileira, a Lei Geral da Micro e Pequena Empresa. Baseada no uso dos conceitos de tratamento diferenciado, simplificado e preferencial para pequenas empresas, a extensão à média empresa teria inviabilizado a amplitude de benefícios concedidos por esta abordagem. De imediato, teria esbarrado no veto das áreas fiscais do Estado – e esse veto no Brasil, todos sabem, é intransponível. Nesse sentido, Brasil e Chile acertaram e deram um passo adiante ao concentrar-se no campo dos empreendimentos de pequeno porte e ao dar atenção crescente às micro-empresas, antes tão pouco visualizadas como objeto de política. Os demais países estão os seguindo nessa direção, mas com velocidades muito variáveis.
Este movimento ajudou a fazer com que as políticas avançassem para um paradigma onde são vistas como elementos de novo modelo de desenvolvimento. A disseminação de capacidades já não seria mais deixada exclusivamente à iniciativa das grandes empresas, assim como o espaço econômico das pequenas empresas passaram a ser vistos como espaços relevantes e não mais como domínio residual. Esta transformação ainda não se completou, mas já avançou o suficiente para tornar irreversível um novo paradigma do desenvolvimento econômico.
Outros pontos de avanço
Alguns outros avanços essenciais completaram o cenário que viabilizou a construção deste novo modelo de ação em prol do desenvolvimento econômico e social.
O primeiro foi institucional: a consolidação, na década de 90, do SEBRAE, uma instituição de caráter público-privado, dispondo de orçamento livre do contingenciamento por parte do Tesouro Nacional3, e gerido a partir de uma engenhosa governança tripartite (organizações empresariais, instituições de Estado e organizações de terceiro setor ligadas ao desenvolvimento econômico e à inovação tecnológica). Essa estrutura de governança, à parte os impulsos de captura por interesses tão comuns nos países de cultura patrimonialista, ao reunir os três setores básicos, impulsionou a instituição a se abrir às influências externas alheias ao seu próprio domínio, tornou-as mais permeável às demandas sociais e às inovações programáticas, que ora vinham do governo, ora do setor empresarial, ora do terceiro setor. O fato de dispor de um orçamento anual significativo (da ordem de centenas de milhões de euros), não suscetível de contigenciamento, deu ao SEBRAE a condição de projetar, experimentar e avaliar métodos inovadores de trabalho junto aos setores de pequenas empresas. Este passo foi importante porque políticas de pequenas empresas, em ambiente de escassez de conhecimento como são os países latino-americanos, requerem instituições com forte capacidade de ação.
Em seguida, teve enorme relevância a formação de um mercado de serviços de desenvolvimento empresarial, financiado principalmente pelas demandas emanadas dos Governos mas sobretudo do Sebrae e demais instituições do Sistema S4, através de encomendas de consultoria. Dele surgiu uma miríade de metodologias para aprimoramento de técnicas de gestão, difusão dos conceitos e métodos de qualidade, enfim, do que se convencionou chamar de empreendedorismo ou cultura empreendedora. O papel do empreendedor transformou-se em objeto de conhecimento, técnicas e métodos específicos sendo usados para estimular e cultivar os hábitos e as habilidades que geralmente caracterizam o empreendedor de sucesso. O sucesso do Programa Empretec5, que formou no Brasil cerca de metade do total de empreendedores formados no resto dos países onde é aplicado, constitui um dos sinais marcantes deste processo.
Predisposição ao risco, racionalidade, planejamento, perseverança nos objetivos para consecução de projetos, flexibilidade para correção de rumos, busca permanente informações relevantes, construção de redes de relacionamento, manutenção de permanente atenção no cliente e nos mercados, são algumas das características que o empreendedor de sucesso geralmente tem e são passíveis de ser exercitadas. Este mercado de serviços de desenvolvimento empresarial consolidou-se, e uma enorme quantidade de consultores de diferentes níveis de qualidade e portanto de preços, passaram a gravitar em torno de contratos produzidos pelo “Sistema S” 6 como um todo, e, à medida que a grise fiscal do Estado foi sendo contornada, também pelos governos.
Uma miríade empresas de consultoria, geralmente pequenas, quase sempre profissionais autônomos com boa formação acadêmica, com visão de mercado e portanto com habilidades e competências adequadas ao atendimento de demandas emanadas do setor de pequenas empresas, nasceu. O campo dos empreendimentos de pequeno porte nunca havia sido propriamente objeto de estudo no ambiente acadêmico7. Estes profissionais e empresas conseguiram se sustentar criando produtos, métodos e abordagens destinadas a impulsionar o desenvolvimento de pequenas empresas. As entidades nacionais estabeleciam os conceitos, formulavam programas, linhas de atuação e projetos, e um mercado de serviços de desenvolvimento empresarial se encarregava de levar às empresas sob a forma de consultoria. Esta configuração retro-alimentou de forma vigorosa as instituições do Sistema S com feed-backs da experiência, realidade e diagnóstico de necessidades do setor privado. O bom funcionamento deste mercado de prestação de serviços ao desenvolvimento das empresas é hoje um dos trunfos comparativos da economia brasileira frente aos nossos vizinhos.
O quarto momento definidor de um substancial avanço na política de pequenas empresas, parte desse modelo de desenvolvimento baseado em pequenas empresas, foi um processo conhecido como “organização da demanda”. Ao concentrar a estratégia de ação institucional dos órgãos de apoio a pequenas empresas no trabalho com grupos de empresas, em coletivos empresariais, esse viés de abordagem permitiu uma reavaliação de uma enorme gama de programas que enchia as “prateleiras” das instituições e uma salutar focalização no uso de recursos. Esse movimento teve o importante mérito de ajustar o foco em ambientes mais propensos ao aprendizado. A dispersão que tinha resultado da contratação assistemática de empresas de consultoria para elaboração de novos produtos, estimulando a capacidade de inovação de um mercado já altamente criativo, pode ser corrigida.
Esta tentativa de reorganizar a ação institucional levou ao foco nos clusters empresariais. Na esteira da influência de Michael Porter à teoria da competitividade, produziu àquilo que bem se poderia chamar de a “descoberta” dos Arranjos Produtivos Locais – os APLs. No final da década passada, os primeiros sinais de compreensão da relevância dos clusters empresariais como redutos de inovação, aceleração do desenvolvimento empresarial e formação de focos de competitividade industrial, avançaram numa velocidade impressionante. Em poucos anos, o Brasil saiu da primeira iniciativa de estudo de clusters - uma encomenda da Federação das Indústrias de Minas Gerais em 1997 a uma empresa de consultoria internacional - 8 à construção dos elementos de uma engenhosa, senão arrojada política industrial, envolvendo dezenas de instituições públicas e uma enorme quantidade de agentes empresariais privados. Os policy makers brasileiros começaram a mirar o interior do país, descobrindo que havia centenas desses adensamentos empresariais, surgidos ninguém sabia bem como, discretamente, jamais beneficiados por qualquer política pública a não ser a de terem sido ignorados e, por conseqüência, existido longe da mão fiscalizadora do cumprimento das formalidades burocráticas do Estado e, sobretudo, da mão tributadora.
Da descoberta à construção interinstitucional de políticas
Rapidamente o país avançou da compreensão do fenômeno dos clusters à percepção de que havia um significativo número de concentrações empresariais espalhadas pelo país, nas capitais e centros industriais mas também no interior dos Estados, que podiam ser aproximados à noção de cluster empresarial, numa espécie de proxi pouco evoluído do conceito de Porter. Pode-se falar de uma descoberta porque nunca tinha sido atentado, entre os analistas do desenvolvimento brasileiro, para a relevância que estavam adquirindo, em numerosas cidades de porte médio, com repercussões nas pequenas comunidades vizinhas, os adensamentos empresariais especializados num tipo de atividade econômica. Nos últimos trinta, vinte ou mesmo dez anos, haviam surgido como cogumelos em setores tradicionais tais como calçados, móveis e confecções, mas também outros, mais raros, como mecânica, máquinas e ferramentas, equipamentos médicos e odontológicos, eletrônica, novos materiais. Alguns destes sistemas territoriais já tinham centenas de empresas, uns poucos milhares de empresas, e uma enorme quantidade envolve a escala das várias dezenas de empresas.
Procurando captar sua precariedade frente aos clusters, bem mais sofisticados, estudados pela escola do MIT, onde a especialização e segmentação, a combinação de manufatura e serviços era ampla, a integração entre indústrias de bens de consumo e de bens de capital intensa, canais de distribuição eram estruturados com alto nível de competência, um intenso processo de discussão que envolveu o ambiente acadêmico e as instituições de apoio, e do qual se produziu um acordo bastante amplo para caracterizar estas estruturas como “arranjos”9 produtivos. Essa expressão do português denota ao mesmo tempo precariedade, estágio embrionário ou pouco sistemático, baixo grau de sofisticação econômica. Dessa forma se diferenciou nossas estruturas dos sistemas empresariais chamados na Itália de distritos, nos Estados Unidos de clusters, na França de sistemas produtivos.
Para diferenciar a precariedade do arranjo produtivo das organizações mais complexas, foi criado o conceito de Sistema Local de Inovação, designando realidades econômicas mais avançadas, onde a integração do sistema empresarial ao sistema de pesquisa já se produzia e o processo de inovação já apresentavam impulsos autônomos e não apenas miméticos. Introduziu-se assim uma diferença de grau de complexidade, usando os APLs para designar sistemas pouco complexos, enquanto a expressão Sistemas Locais de Inovação referiria a estruturas mais complexas, com maior grau de especialização e segmentação empresarial, com presença de instituições de pesquisa e desenvolvimento e com canais de distribuição mais estruturados.
Da definição conceitual rapidamente o país alcançou elevado grau de consenso de que havia ali um campo a ser explorado como política industrial. Em 2003, cerca de duas dezenas de instituições públicas e privadas de nível nacional participavam do “Grupo de Trabalho Permanente” voltado para estruturar propostas de ação para o desenvolvimento dos APLs. As principais instituições de desenvolvimento econômico do país faziam parte desse grupo liderado pelo Ministério do Desenvolvimento. Envolvia Ministério de Ciência e Tecnologia, da Integração, BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Banco do Nordeste, e mais uma gama de instituições desde as dedicadas à metrologia (INMETRO), ao financiamento de inovações (FINEP), bem como o Sistema Indústria com o SENAI e o IEL. Uma concentração intensiva de recursos humanos e financeiros do Sebrae, que chegou a destinar 60% de seus recursos orçamentários anuais10 para aplicação em ambientes territoriais completou um quadro de elevado potencial de difusão de ações. Um raro grau de consenso, uma virtual unanimidade se produziu no país de que nesse campo havia uma promissora agenda de desenvolvimento.
As experimentações destinadas a construir metodologias avançaram rapidamente, com um primeiro projeto apoiado pelo Banco Interamericano iniciado em 2002 articulando parceria ítalo-brasileira para trabalhar quatro APLs de setores distintos, em variados estágios de desenvolvimento, com estruturas empresariais diversificadas, e com variado número de empresas (do milhar a três dezenas de empresas). Baseado na apropriação e “metabolização” da experiência italiana, tentava adaptar as influências internacionais às circunstâncias institucionais, econômicas e culturais brasileiras. Outras experiências práticas foram capitaneadas pelas Federações de Indústria e pelo IEL e vários estados brasileiros, numa acelerada progressão quantitativa.
Ao passo que o grupo de trabalho interinstitucional consolidava sugestões conceituais e metodológicas, e com os resultados do projeto Promos/Sebrae já se mostrando positivos, o BID criou a possibilidade de que Estados brasileiros apresentassem projetos para captar fundos reembolsáveis no valor da dezena de milhões de dólares, viabilizando amplos programas estaduais. Quatro estados se candidataram imediatamente e, embora a aprovação dos projetos, a liberação recursos e a implantação dos programas estejam avançando lentamente, impulsionou-se a construção de programas estaduais.
Um intenso processo apropriação de técnicas, métodos e estratégias empresariais pouco conhecidas antes foi desencadeado. E aqui está o ponto central que é preciso colocar em evidência. Projetos de desenvolvimento de um sistema produtivo local se fazem ou na forma de transferências de conhecimento ou de estímulo e facilitação à apropriação autônoma de conhecimento, num processo de adensamento da articulação entre as empresas e centros de conhecimento, desde as essenciais entidades de formação profissional, passando pelas empresas de serviços de desenvolvimento empresarial para chegar às instituições de pesquisa e inovação tecnológica, de mercado, serviços em design, etc. O primeiro e mais essencial processo a ser introduzido de forma ampla é o aprimoramento da qualificação da mão de obra.11 Em seguida, a difusão de capacidades e competências em gestão empresarial – financeira, de recursos humanos, gestão de produção, etc.– tudo isso deve ser trabalhado pelas empresas. Normalmente o processo começa com as empresas mais avançadas, atingindo depois empresas cada vez mais distantes da vanguarda dos empresários, usando um processo de difusão de conhecimento semelhante à da “pedra lançada ao lago”.
Aquilo que podemos chamar de “processo distrital” – geração de externalidades positivas, spin offs, enfim, a circulação de conhecimento produzido por um ambiente de adensamento empresarial e que foi a base da teoria formulada por Alfred Marshall no início do século XX sobre os distritos industriais – adquire um papel de importância maior. A compreensão da conexão entre a capacidade produtiva, quantitativa e qualitativa, como fator definidor da competitividade e, portanto, como capacidade de agressão de mercados, avançou. O entendimento de que a problemática da distribuição é fator essencial de definição das possibilidades de inserção em cadeias de valor levou muitos empresários atuando no interior de APLs a ter uma idéia mais acurada, mais técnica, mais profissional das reais possibilidades de conquista de novos espaços de mercado. Rapidamente levou à percepção da capacidade de produção de inovação como determinante essencial do estágio das próprias possibilidades econômicas e empresariais de um dado sistema territorial.
O tema do design, seja na sua dimensão de criação de novos produtos, ou seja na dimensão estratégica de concepção de produtos adequados à evolução da demanda, encontrou terreno fértil no país, com resultados rapidamente visíveis surgindo da enorme quantidade de cursos introdutórios oferecidos. Escolas européias instalaram-se no país ao lado das instituições mais tradicionais brasileiras, e a própria expressão “desenho industrial”, antes prevalecente, foi substituída pelo conceito de design. O processo de atração de talentos e de formação de novos quadros acelerou-se, com uma primeira geração de designers se envolvendo cada vez mais no trabalho com pequenos empreendimentos, fato absolutamente inédito na história econômica da indústria brasileira.
Ao mesmo tempo, programas de exploração do design como forma de conexão entre a base cultural do país e das diversas regiões no processo de construção de temáticas inspiradoras do design de produtos encontraram um terreno fértil numa cultura fortemente plástica como a brasileira. Começaram a surgir coleções baseadas em elementos históricos e estéticos das regiões, processo que contribuiu, de maneira que o futuro ainda dimensionará a repercussão, no entendimento, por parcelas expressivas do empresariado nacional, que a cultura de suas comunidades pode adquirir valor de ativo estratégico para suas empresas. APLs de móveis, confecções e calçados, sobretudo, iniciaram experiências que hoje já fazem parte de sua rotina empresarial. Nesse processo, a política de APLs aproximou-se de uma política de valorização da cultura nacional.
Em menos de meia década, portanto, o Brasil conseguiu articular elevado nível de consenso estratégico entre as instituições envolvidas numa política de desenvolvimento de sistemas produtivos clusterizados, logrou pôr em prática um intenso intercâmbio internacional com países benchmark nestas políticas – Itália, Espanha, França e Estados Unidos -, constituiu programas nas diversas unidades da Federação, iniciou a formação de quadros de especialistas na gestão e no domínio dos conceitos e das técnicas específicas ao desenvolvimento de sistemas produtivos, reuniu recursos suficientes para implantar projetos num número muito significativo de ambientes empresariais e iniciou o processo de monitoramento e avaliação destes projetos. Um ciclo praticamente completo de implantação de uma política pública consistente. Hoje, pelo menos duas centenas de projetos em ambientes territoriais – é claro que projetos com variáveis graus de complexidade – estão sendo conduzidos. Uma gama ampla de instituições conhece o conceito de APLs, e assimilaram sua parte de contribuição no seu processo de desenvolvimento. Mais que isso, o conceito tornou-se conhecido pela uma quantidade de empresários que, com ele, perceberam suas comunidades empresariais de uma forma diferente do que percebiam antes.
Passos para um sistema de apoio à inovação com foco na demanda
O sexto importante passo de evolução do Brasil em políticas de desenvolvimento difuso foram dados nos últimos quatro anos, enfrentando o desafio de construir um sistema de apoio à inovação nas empresas mais consistente. Trata-se de complemento decisivo, visto que aqui nos deparamos com dificuldades importantes. Elas vêem do desafio de produzir uma coordenação interinstitucional onde nunca houve intercâmbio mais sistemático, rompendo culturas de isolamento e auto-suficiência, e da necessidade de passar a se trabalhar de uma cultura “ofertista”12 para uma cultura de foco na demanda. O desafio aqui é grande porque de ordem manifestamente cultural. A configuração das instituições de suporte ao desenvolvimento tecnológico surgiu de uma evolução histórica muito variada. Universidades, centros de pesquisa tecnológica, fundações e autarquias, instituições não-estatais de caráter público e gestão privada como são as entidades do Sistema S, uma variada gama de instituições formaram o sistema que tem a vocação de apoiar a inovação nas empresas.
Essa variedade carrega distinções de cultura e de vocação, que por um lado são ativos no atendimento à diversidade das necessidades, mas por outro lado geram tendência ao isolamento, à incomunicabilidade de políticas e métodos, tão naturais em instituições. Estas instituições, em graus variados, padecem de um crônico distanciamento da vida empresarial. Seja pela natural introversão dos ambientes acadêmicos, muito freqüentemente por uma aversão de natureza ideológica à lógica da vida empresarial, esse fechamento ao mundo faz com que as instituições ofereçam serviços e soluções desenvolvidas a partir de seus próprios interesses e não de sua necessidade para as empresas.
Um importante passo para reverter essa tendência e impulsionar a integração entre os centros de conhecimento e os sistemas empresariais foi dado com a constituição dos fundos Setoriais e com a regulamentação das leis de inovação (2004-2005). Este arcabouço legal autoriza o governo federal a contratar projetos de pesquisa e desenvolvimento em empresas, com recursos não-reembolsáveis ou reembolsáveis com custo subsidiado. Em 2006 a FINEP13 iniciou o lançamento de editais para seleção de projetos de P&D em empresas de micro a grande porte. Os resultados dos três editais já lançados produzem alguma polêmica quanto à sua eficácia, alguns desvios ainda são constatados, mas inequivocamente construíram um caminho pelo qual empresas inovadoras poderão periodicamente buscar recursos para projetos de inovação.
No edital de 2006 foram distribuídos R$274 milhões (cerca de 90 milhões de euros), em 2007 EU$ 105 milhões e em 2008 150 milhões de euros. O crescimento do uso é inequívoco. Ainda se pode avançar muito na adaptação dos editais às condições das empresas de pequeno porte, e muitas regras não são de lógica compreensível pelas empresas, mas o fato é que o processo foi desencadeado e a disponibilidade de recursos é real. Neste ano, o valor mínimo de propostas deveria ser de R$500 mil para micro e pequenas empresas e de R$1 milhão para médias e grandes, até o máximo de R$10 milhões. Na soma dos três editais lançados, a FINEP já disponibilizou cerca de R$1 bilhão, mais de 300 milhões de euros. Aqui, um dos grandes limites é a capacidade técnica de elaboração de bons projetos, competência técnica que precisa ser aperfeiçoada no mercado de serviços empresariais.
A revisão destes editais de estímulo à inovação buscando soluções mais adequadas, aliada à construção de políticas que aproximem as empresas das instituições de apoio à inovação, aproximando das empresas os centros de conhecimento nos seus mais variados níveis e naturezas, criarão um impulso adicional no rumo de uma moderna “economia de conhecimento”.
Tratamento especial para pequenas empresas
Para encerrar este panorama do modelo de desenvolvimento que o Brasil está construindo, é necessário mencionar um importante eixo de políticas públicas. Ainda que não diretamente ligadas às políticas para adensamentos empresariais e cadeias de produtivas, a agenda Red Tape visando a melhoria do ambiente regulatório da vida empresarial foi atacada nessa década, inspirada claramente no Small Business Act norte-americano. Culminando num processo de intensa mobilização política, foi aprovada em 2006 pelo Congresso Nacional aquela que ficou conhecida como a Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas. Embora não produza políticas voltadas para sistemas produtivos específicos – ou não seria “lei geral”, faz parte de um leque programático que introduziu na agenda nacional a necessidade de aperfeiçoamento do ambiente legal, criando marcos regulatórios adequados às características dos empreendimentos de pequeno porte.
Baseada no pressuposto de que micro e pequenas empresas merecem tratamento diferenciado, preferencial e simplificado – foram os conceitos sistematizados pelo Estatudo da Micro-empresa, introduziu no país uma diferenciação legal deste campo empresarial, com efeitos sistêmicos potencialmente grandes. Embora ainda seja cedo para se avaliar os resultados da Lei, ainda que a questão tributária ainda esteja sendo avaliada em alguns de seus efeitos, e sabendo que alguns efeitos perversos foram já detectados, não resta dúvida que a Lei Geral da Pequena Empresa abriu uma agenda de reformas microeconômicas abrangentes.
O que está por fazer
Se houve um ponto problemático na velocidade desse processo de construção de consenso em torno do vetor dos adensamentos empresariais, foi a dimensão de excesso voluntarista e superficialidade técnica que tendeu a predominar, em mais uma manifestação da tendência brasileira de compensar a carência técnica – e elas eram muitas – com discursos entusiásticos. Foi tão acelerado o processo, que logo começou a ser percebido como um fenômeno de “moda”, gerando alguma expectativa de que, como todo efeito de moda, passaria rapidamente, sentimento que prejudicou a consolidação de instrumentos de política, de ferramentas bem como a preparação de quadros, levando a uma sensação de certa paralisia em alguns ambientes. A construção de estratégias de desenvolvimento para ambientes territoriais requer um elevado nível de competências técnicas assim como de habilidades políticas, e pessoas com esta condição são muito escassas.
Também, regiões que nada tinham que as pudesse caracterizar como APLs passaram a se candidatar aos programas de apoio, provocando confusão em torno do conceito. Grupos de empresas de alcance apenas local disputando o mercado local tentam se conceituar como arranjo produtivo, quando é óbvio que o processo de cooperação não se aplica da mesma forma quando empresas disputam um mercado local. A proliferação de demanda tumultuou o processo de planejamento, processo que apenas agora está se assentando. O efeito de moda provocou também decepções pela lentidão dos resultados que envolvem aquisição de capacidades e competências, seja em qualidade produtiva, em capacidade de distribuição, que exigiam perseverança, esforço e trabalhos de longo prazo.
Um dos desafios mais importantes para os próximos anos será consolidar linhas de trabalho nas diversas instituições, aperfeiçoar a qualidade das ferramentas, separar ambientes propícios ao uso da metodologia para sistemas territoriais de ambientes que não se prestam a isso, e continuar formando quadros capazes de operar esses programas num nível técnico mais refinado14. Políticas territoriais podem ser muito fecundas, mas são altamente exigentes em competências técnicas, humanas e políticas, sem o que de poderá perder o ativo que é este interesse amplo e abrangente em torno dessa estratégia de desenvolvimento.
O maior mérito destas políticas foi a criação de um sistema de difusão de competências em ambientes que nunca foram nem seriam normalmente objeto de políticas de desenvolvimento. O grande mérito das políticas baseadas em adensamento empresariais é a de introduzir recursos em conhecimento em ambientes altamente propícios ao aprendizado, com a potencialidade de difusão e disseminação proporcionadas pelas externalidades geradas por concentrações empresariais.
O sucesso dessa política pública exigirá consolidar um espírito de perseverança, de aprofundamento de qualidade, de técnicas e conhecimentos refinados, abandonando o excesso de voluntarismo presente no primeiro grande ciclo de experiências, pelo qual tudo é tido como possível para qualquer empresa em qualquer nível tecnológico e, mais grave ainda, no espaço de tempo próprio das expectativas empresariais, que é o mais curto prazo. O efeito de moda que impulsionou o consenso inicial terá de ser substituído pela consolidação de uma modalidade de política de desenvolvimento horizontal, capaz de atingir a amplitude do país a partir da repercussão de processos gerados nos pólos empresariais. Efeitos consistentes, muito provavelmente, não surgirão antes de meia década e não se tornarão irreversíveis antes de uma década de trabalho.
Um arranjo produtivo se torna um sistema de inovação quando passa a ter uma visão estratégica e adquire sustentabilidade quando as lideranças empresariais vêm-no como um empreendimento coletivo, com transformações sendo introduzidas de modo pensado, envolvendo um número significativo de empresários. Isto não é feito em tempo demasiado curto, fora exceções. Requer alguma forma de governança setorial e territorial, exige a construção de confiança coletiva, um conhecimento compartilhado dos principais desafios do seu setor. Não se trata de evoluções triviais que surjam da simples realização de eventos, palestras ou cursos. São transformações profundas, de mudanças de modelos e atitudes culturais e profissionais. Dependem da aquisição de técnicas e de conhecimentos que requerem tempo de maturação. Sobretudo, dependem de uma compreensão do processo de inovação que não surge sem uma relação mais sistemática com centros de produção de conhecimento.
Alguns domínios requererão esforço concentrado. Primeiro, lograr dar uma ação mais articulada às metodologias de desenvolvimento de cadeias produtivas, pelas quais se trabalha cadeias de fornecedores e compradores, tanto quanto o que foi alcançado no trabalho em sistemas territoriais. Isto ainda não foi feito com amplitude, detalhamento e organicidade comparáveis à estratégia de APLs. O trabalho com cadeias produtivas constitui uma metodologia complementar ao trabalho em bases territoriais na articulação de uma política de desenvolvimento abrangente. Este ponto tornou-se uma das prioridades máximas do IEL, uma das instituições do Sistema Indústria.
Segundo, será preciso enfrentar o desafio da articulação interinstitucional, definindo melhor papéis, integrando ações, compartilhando feed-backs das experiências e criando uma sistemática de monitoramento e avaliação. Será necessário retomar o envolvimento dos principais órgãos do Governo. Depois de uma fase inicial de forte colaboração, houve uma certa dispersão no processo de trabalho que seria necessário implementar. Aquilo que se propõe aos empresários como lição elementar para o avanço de um ambiente clusterizado, a cooperação inter-empresarial, deve ser assumido também pelas instituições como meta, como compromisso, na forma de compromissos firmes, e não como um mero discurso a que não se dá conseqüência prática.
Em particular ao ambiente do Sistema Indústria, será essencial aproveitar extraordinário ativo de uma política industrial brasileira que são os Centros Tecnológicos do SENAI, direcionando sua elevada competência técnica para o atendimento de aglomerações de empreendimentos de pequeno porte. O mundo das pequenas empresas, sem nunca ter sido declinado, também nunca foi foco central de concentração de atenção e competências, muito mais voltada para a realidade das empresas de médio e grande porte, até por seu poder de contratação. Será necessário conhecer mais de perto a demanda tecnológica das pequenas empresas, criar fluxos e métodos de atendimento a tempo e a hora para este tipo de demandas, construir uma linguagem que compreenda e traduza a formulação normalmente imprecisa, dado o precário grau de sofisticação técnica dos gestores destas empresas, das demandas dessas empresas. Finalmente, será necessário estruturar uma precificação adequada à capacidade de pagamento destas empresas.
Desafios programáticos para o Sistema Indústria
Para avançar no aprofundamento de relações entre as instituições do Sistema Indústria e as economias locais, a CNI buscou o apoio do Fundo Multilateral de Investimentos – Fumin, com uma proposta envolvendo a própria CNI, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, o Serviço Social da Indústria e o Instituto Euvaldo Lodi num projeto de ação integrada para o desenvolvimento territorial. Cada instituição atuará na sua especialidade; a CNI na mobilização dos empresários para a discussão de projetos regionais de desenvolvimento e na articulação de outras instituições para a formulação de estratégias; o SENAI no direcionamento dos centros tecnológicos para funcionar como base de formação e capacitação de recursos humanos, de prospecção de tendências e de inovação tecnológica; o SESI no desenvolvimento da cultura de responsabilidade social e no aprimoramento da qualidade do ambiente de trabalho; o IEL trabalhando a competência de gestão das empresas.
Numa linha de iniciativa complementar, a partir do diagnóstico de distanciamento entre as instituições de pesquisa e as empresas, o Sistema Indústria e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, em parceria com as instituições regionais que têm por missão o estímulo à inovação nos estados, estão iniciando um projeto em torno do conceito de Sistemas Regionais de Inovação. Partindo das necessidades empresariais tal como as empresas apresentam-nas, procurar dar maior consistência e articulação nas diversas instituições, clarificando papéis, evitando sobreposições, estimulando sinergias, avançando na sua existência como um efetivo sistema, capaz de dar alcance às políticas de inovação. A principal preocupação será superar a “cultura ofertista” do setor acadêmico e de instituições de desenvolvimento técnico e tecnológico.
Esta é uma visão pessoal sobre aquilo em que o Brasil avançou e de alguns pontos do que resta fazer para criar uma vibrante política industrial para ambientes produtivos envolvendo sistemas de pequenas empresas. Através dela, será possível alcançar resultados significativos na geração de impulsos difusos ao desenvolvimento, capazes de penetrar amplamente o tecido social e com uma abrangência territorial nacional. Para perseverar no muito que ainda resta por fazer é antes de tudo preciso reconhecer o quanto já se avançou. Aprofundar técnicas, articular soluções e programas, passar do consenso construído sobre um efeito de moda intelectual para se tornar uma política pública consistente, sistemática e duradoura, são os principais desafios.
Sabe-se que o desenvolvimento econômico requer a consistência de políticas públicas na escala de décadas e não apenas do tempo de um governo. A visão de um país avançando pela difusão de conhecimento através da organicidade de seus sistemas produtivos, utilizando o mais intensivamente possível todos os seus ativos, é um cenário raro, cuja oportunidade histórica não deve ser perdida.
* Renato Caporali é Doutor em Sócio-economia do Desenvolvimento pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e Gerente Executivo da Unidade de Cooperação Internacional da Confederação Nacional da Indústria.
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