
* Renato Caporali
Entendamos bem: a pergunta deve ter como horizonte nossas potencialidades no horizonte à vista, e o horizonte à vista de uma geração nunca excede duas décadas à frente. Mais que isso, tudo fica incerto demais. Tenhamos claro o momento em que estamos. Já fazem trinta anos que a esquerda brasileira hegemonizou o cenário político. O país foi desenhado institucionalmente dentro dessa longa hegemonia, tornou-se cultura dominante, viveu seu apogeu e agora parece se delinear um novo momento, que provavelmente manterá muito do que foi construído, mas com novidades, pois é raro uma geração não construir algum diferencial para com a geração anterior. Um modelo de desenvolvimento foi desenhado nos anos 90, amadurecido na virada do milênio e na primeira década e levado ao estresse nos últimos anos. Alguma coisa vai mudar para o futuro. Qual o rumo mais promissor tomar. Esse artigo se propõe dar uma resposta à questão proposta pela pauta da Revista da ESPM.
No campo das potencialidades econômicas sempre são bem vistas previsões otimistas e é geralmente muito mal visto previsões mais pessimistas. Pelos poderosos de plantão, mas também pela gente comum, que só quer da vida trabalhar sério e ter esperança de que o futuro será melhor que o presente. Mas convém sempre ser realista, até porque não adiantam delírios otimistas quando a realidade não bate com o projeto. Nós, os brasileiros, somos por demais inclinados a sonhadores, somos pouco práticos, somos pouco técnicos (pelo menos em relação à parte mais avançada do mundo). Quando se trata de competitividade – já que em termos de competitividade a relação é com o mundo todo – não há chance de sucesso para discursos ufanistas e arrogantes, tão ao gosto das áreas mais acomodadas de nossas elites. Discurso grandioso para desempenho medíocre. É uma das feições do homem cordial brasileiro, que Machado de Assis tão finamente gozou ao longo da vida.
Esse preâmbulo visa preparar o leitor para uma abordagem mais francamente realista da capacidade competitiva da economia brasileira – e ligeiramente pessimista quanto ao futuro, por uma razão precisa que será apontada. Pensaremos a economia com três grandes setores como tradicionalmente: agricultura, indústria e serviços. A proposta a ser feita compreenderá as cadeias de valor geradas nestes três setores como integradas.
Façamos antes de tudo um breve apanhado da situação. Como anda nossa competitividade? Um grande número de estudos, utilizando amplo leque de ferramentas, avalia o grau de competitividade das diversas economias nacionais. Um dos mais conhecidos, o Doing Business do Banco Mundial, vem sendo trabalhado há anos e construindo uma série histórica consistente. Na média, todos coincidem em colocar o Brasil ali pelo terço inferior das nações do planeta. Entre as duzentas nações do mundo, estamos claramente na metade retardatária. Quando se vai para universos mais seletos, caímos para os últimos postos, o que confirma estarmos na mediana inferior da competitividade. Nos nossos melhores indicadores, aparecemos entre o quarto e o terço mais avançado. Em quase nada somos vanguarda mundial. Já nem no futebol.
Antes de tratar o que está acontecendo em cada um dos três grandes setores, existe uma problemática que os atravessa todos, e que é a da produtividade do trabalho. Há diferenças entre a produtividade nos diversos setores e até dentro dos setores. O problema surge quando a média é baixa demais. Produtividade é o fator decisivo da competitividade. Existem alguns complementares, como a capacidade de pôr produtos no mercado mundial, mas no fundo e no essencial elas espelham a produtividade de forma geral. Se a produtividade é elevada, um país cria capacidade de colocar produtos no mercado mundial. Se é baixa, o país tende a depender dos circuitos mundiais que dominam cada setor das diversas atividades comerciais. Para liderar cadeias globais de valor, até mesmo para participar delas no mercado mundial, é preciso ter um setor com elevada produtividade em pelo menos alguns dos elos dessa cadeia. O problema mais geral da economia brasileira atual é que sua produtividade média estagnou durante os últimos vinte anos, enquanto em quase todo o resto do mundo, ela vem crescendo, na maior parte dos países regularmente, na China e na India aceleradamente.
Os dados, se não forem alarmantes, não permitem nenhuma dúvida de que a situação é complicada. A produtividade no Brasil está virtualmente estagnada há mais de duas décadas. [[[[ ]]]] É verdade que essa estagnação de longo prazo tem duas razões, uma positiva enquanto a outra é negativa. A razão positiva é que isso ocorreu parte porque o denominador da razão que mede a produtividade – os custos de produção, entre os quais o maior é o do trabalho – subiram pronunciadamente ao longo destes anos que coincidem com o fim da inflação no Brasil. O chamado custo unitário do trabalho subiu pronunciadamente e o custo de trabalho forma a maior parte do denominador da razão da produtividade Já a razão negativa, é que o numerador da razão, o valor produzido, não acompanhou o crescimento dos custos.
Isso tem acontecido por uma série de causas, mas a principal delas é a baixa capacidade produtiva média do trabalhador brasileiro. E aí, a razão dessa deficiência, já não há a menor dúvida, é quase consensual: a baixa qualidade da educação brasileira. Nossas deficiências em matemática, em capacidade de expressão, em raciocínio lógico e científico e, por consequência, em competências técnicas limitam nossa capacidade produtiva. Uma espécie de horizonte limitador de produtividade. O Brasil até tem ilhas de excelência, como no campo da aviação, em alguns domínios na agroindústria, na indústria do petróleo, mas elas não são suficientes para impacter mais fortemente a média nacional. No último ciclo de crescimento, os dois governos Lula, às carências na qualidade do trabalho somou-se a inflexão para um declínio na oferta de trabalho, por essa radical revolução demográfica que o país está vivendo.
O Brasil está combinando a baixa qualidade da sua oferta de trabalho com restrições quantitativas nessa oferta. Já estão entrando menos jovens no mercado de trabalho, além de que essa oferta é de baixa qualidade produtiva. Com isso o custo do trabalho sobe também pressionado pela escassez de mão de obra. A peculiaridade é que, aqui, esse processo aconteceu um pouco diferente do que foi na quase totalidade dos países desenvolvidos: está acontecendo antes de termos renda média elevada, ou seja, antes de alcançarmos níveis de produtividade próximos ao dos países ricos. Ficamos caros antes de termos ficado ricos.
É verdade que a produtividade dos diversos setores é dispare. Pensemos na tradicional divisão entre os três setores básicos – primário, secundário e terciário -, começando por este último, o setor que mais mão de obra captou neste último ciclo histórico. Trata-se de setor altamente heterogêneo onde os setores de alta produtividade são pequenos em relação à grande massa com baixa produtividade. A indústria de transformação – o setor secundário – tem produtividade média mais elevada, mas aqui o problema é que esse setor vem tendo sua participação no PIB declinante há trinta anos. Na virada do milênio esse processo se acentuou, e hoje, produzimos em nossa indústria basicamente um valor equivalente ao que produzíamos em 2008. A indústria brasileira está estagnada e não ainda há sinal de reversão da situação.
A tentativa de preservar o espaço da indústria na amplitude que ela adquiriu ao longo do processo de substituição de importações, através de políticas defensivas, acabou por limitar nossa especialização num momento em que a indústria mundial reorganizava a economia industrial através de cadeias de valor mundialmente estruturadas. Os tratados de livre comércio foram direcionando essa redistribuição dos investimentos no mundo, campo em que o Brasil foi dos países menos ativos. Os poucos acordos feitos nesse sentido foram com países pequenos, como a minúscula economia de Israel. O Mercosul tem regredido, a integração interamericana morreu de morte matada, a aproximação com a União Europeia esbarrou no nosso conservadorismo industrial aliado ao conservadorismo da política agrícola europeia. Com esses dois setores na retranca, os líderes dos dois blocos não conseguiram avançar apesar da elevada afinidade cultural e política entre Europa e América do Sul.
Essa combinação de um setor industrial pouco produtivo, limitado em seu crescimento por barreiras externas e pressionado internamente por uma moeda valorizada devido à pujança do setor primário com apoio da necessidade de financiamento do setor público, foi fatal. A indústria brasileira passou de 35% do PIB no início dos anos 80 a algo como 12% no ano passado. O setor serviços absorveu praticamente todo o excedente de mão de obra liberado pelo setor industrial. Com uma produtividade média mais baixa do que a da indústria, contudo, esse deslocamento faz cair ainda mais a produtividade média. O dinamismo criador de valor econômico veio da agricultura e da mineração, o setor primário. Foi o setor primário que demonstrou dinamismo nos aumentos de produtividade e na integração à economia internacional. O dinamismo da agricultura revolucionou o mapa do desenvolvimento no país, tendo vindo dela agricultura grande parte das exportações que mantiveram o equilíbrio do setor externo da economia, e o fez com tal momentum que terminou por, acoplada a taxas de juros muito elevadas, valorizar fortemente a moeda brasileira. O que acentuou o processo de desindustrialização.
Avaliando, nenhuma destas tendências parece em vias de reversão. A qualidade da educação, se atacada com determinação, requereria de trinta a cinquenta anos para produzir resultados. A rigor, são duas gerações. Por mais que coloquemos recursos na educação, os resultados levarão da ordem de décadas para se fazer sentir, pois é preciso que uma nova geração de professores, formada por melhores profissionais, passe a dirigir a educação nacional. O setor serviços continuará sendo o estuário da baixa qualidade da força de trabalho brasileira e a escassez de recursos humanos de alta qualidade continuará limitando sua eficiência. Uma importante parte do setor industrial e da agricultura de baixa produtividade permanecerá atendendo ao mercado interno, o que, aliás, constitui um dos nossos grandes trunfos econômicos, o mercado interno permitindo a sobrevivência de setores pouco competitivos em termos internacionais. A agricultura de alta produtividade, voltada para o mercado internacional, continuará sendo o setor mais pujante da economia nacional, ao lado dos serviços urbanos.
Em tal cenário, a pergunta estratégica seria onde se afiguraria possível fazer mais avanços com menos recursos? Como manter um nível mínimo de competitividade enquanto uma possível revolução na educação não produzir seus impactos mais profundos. Para onde direcionar nossos esforços? Temos uma única certeza, a de que não há recursos suficientes para atender a tudo. Alguns setores não poderão ser contemplados Que setores privilegiar, então?
Acredito que essa pergunta tem resposta precisa, e essa resposta está sendo dada pela economia real ao longo dos últimos vinte anos. O setor agrícola é o que se afigura com maior poder de competitividade. A indústria está bloqueada pela tripla muralha que é a indústria chinesa, a moeda valorizada e, como se não bastassem as dificuldades, o redesenho das cadeias mundiais de valor, das quais o país ficou afastado nos últimos anos.
Mas, atenção, agricultura e mineração, para serem competitivas, exigem uma vasta rede de serviços e indústria Essas atividades complementares conformam a cadeia produtiva, condição de inserção nas cadeias de valor globais. Manter a competitividade em escala global exige uma dinâmica inovadora em todos os campos: na agricultura, na indústria e nos serviços que fazem parte dessa cadeia de valor. Dada nossa extensão e diversidade territorial - esse continente tropical, subtropical, algumas áreas temperadas - produz uma miríade de potenciais campos de negócio. Já caminhamos para ser por muito tempo o maior exportador de alimentos. Podemos ser um grande produtor florestal e de subprodutos da floresta, basta manejarmos com responsabilidade nossos vastos recursos. Podemos ser o maior produtor de fitoterápicos do planeta, disponibilizando uma imensa quantidade de produtos que serão essenciais à indústria da saúde, do bem-estar, da beleza.
O foco estratégico mais promissor parece esse. Um bom conceito para isso é a Bioeconomia: economia de produção de riquezas de base natural. Esse é o nosso potencial. Um modelo como este teria ainda o mérito de atenuar as pressões sobre as grandes áreas urbanas, pois pode-se prever migrações rumo às cidades médias, que aliás já começou. Isso melhorará a vida na cidade grande sem degradar as cidades médias, desde que tenhamos políticas urbanas bem pensadas. É um caminho plausível, sem firulas. Há que desconfiar de firulas em excesso, como em futebol. Em política de desenvolvimento invencionices podem custar caro. No campo industrial, temos as cidades recentemente industrializadas, os APLs. Eles estão sobrevivendo à crise, estão provando sua notável resiliêncial. É possível apoiá-los de forma simples e adequada. Esse caminho, aliás, não significa esquecer a indústria. Significa apenas especializar mais naquilo que tem mais nos enriquecido, nas últimas décadas, enquanto nação, povo.
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